quinta-feira, 15 de março de 2012

A Luz do Baile


                                                                                                                                por Monteiro Lobato

Despercebidos de todo passaram-se este mês dois aniversários. A 2 dedezembro nasceu, a 5 de dezembro faleceu D. Pedro II. Quem foi este homem que não deixou lembranças neste país? Apenas um Imperador…Um Imperador que reinou apenas durante 58 anos… Tirano? Despótico?  Equiparável a qualquer facínora coroado? Não.

 Apenas a Marco Aurélio.

A velha dinastia bragantina alcançou com ele esse apogeu de valor mental e moral que já brilhou em Roma, na família Antonina, com oadvento de Marco Aurélio. Só lá, nesse período feliz da vida romana, é que se nos depara o sósia moral de Pedro II.

 A sua função no formar da nacionalidade brasileira não está bemestudada. Era um ponto fixo, era uma coisa séria, um corpo como os hána natureza, dotados de força catalítica.

 Agia pela presença.

O fato de existir na cúspide da sociedade um símbolo vivo e ativo da Honestidade, do Equilíbrio, da Moderação, da Honra e do Dever, bastava para inocular no país em formação o vírus das melhores virtudes cívicas...

O juiz era honesto, senão por injunções da própria consciência, pela presença da Honestidade no trono. O político visava o bem público, se não por determinismo de virtudes pessoais, pela influencia catalítica davirtude imperial. As minorias respiravam, a oposição possibilizava-se: ochefe permanente das oposições estava no trono. A justiça era um fato:havia no trono um juiz supremo e incorruptível. O peculatário, odefraldador, o político negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionário relapso, o mau cidadão enfim, e mau por força de pendorescongeniais, passava, muitas vezes, a vida inteira sem incidir num sódeslize. A natureza o propelia ao crime, ao abuso, à extorsão, à violência,à iniquidade mas sofreava as rédeas aos maus instintos a simples presença da Equidade e da Justiça no trono.

Ignorávamos isso na Monarquia.

Foi preciso que viesse a República, e que alijasse do trono a forçacatalítica, para patentear-se bem claro o curioso fenômeno. A mesma gente, o mesmo juiz, o mesmo político, o mesmo soldado, omesmo funcionário até 15 de novembro honesto, bem intencionado, bravoe cumpridor dos deveres, percebendo, na ausência do imperial freio,ordem de soltura, desaçamaram a alcatéia dos maus instintosmantidos em quarentena. Daí, o contraste dia a dia mais frisante entre avida nacional sob Pedro II e a vida nacional sob qualquer das boasintenções quadrienais, que se revezam na curul republicana.

Pedro II era a luz do baile.

Muita harmonia, respeito às damas, polidez de maneiras, jóias de artesobre os consolos, dando ao conjunto uma impressão genérica deapuradíssima cultura social.

Extingue-se a luz. As senhoras sentem-se logo apalpadas, trocam-setabefes, ouvem-se palavreados de tarimba, desaparecem as jóias…

Como, se era a mesma gente!

Sim, era a mesma gente. Mas gente em formação, com virtudes cívicas emorais em início de cristalização.

Mais um século de luz acesa, mais um século de catálise imperial, e o processo cristalisatório se operaria completo. O animal, domesticado devez, dispensaria o açamo. Consolidar-se-iam os costumes; enfibrar-se-ia o caráter. E do mau material humano com que nos formamos sairia, pela criação de uma segunda natureza, um povo capaz de ombrear-secom os mais apurados em cultura.

Para esta obra moderadora, organizadora, cristalizadora, ninguém maiscapaz do que Pedro II; nenhuma forma de governo melhor do que sua monarquia.

Mas sobrevém, inopinada, a República.

Idealistas ininteligentes, emparceirados com a traição e a inconsciênciada força bruta, substabelecem-se numa procuração falsa e destroem aobra de Pedro II “em nome da nação”.

A nação não reage, inibida pela surpresa, e também porque lhe acenamlogo com um programa de maravilhas, espécie de paraíso na terra.

É sempre assim. Não variam com a longitude nem com a latitude os processos psicológicos de assalto ao poder.

Aqui, assaltado o poder e conquistadas as posições, houve um geral arrancar de máscaras: Enfim, sós.

O “Alagoas” levava a bordo a luz importuna, a luz que empatava. E começou a revista de ano que há trinta anos diverte o país.

Que diverte, mas que envenena.

Que envenena e arruína.

O que havia de cristalização social dissolve-se; volta ao estado de geléia.

Sucedem-se na cena os atores, gingam-se as mesmas atitudes,murmuram-se as mesmas mensagens, reeditam-se eternas promessas.

O povo, cansado e descrente, farto de uma palhaceira destituída damínima originalidade, cochila nas arquibancadas. Nem aplaude, nemassobia; dorme e sonha, entre outras coisas, com o inopinado surto em
cena de um delegado de polícia louro e dez praças de uniformedesconhecido, que ponham fim a pantomima.

Não intervém para realizar por mãos próprias o “basta”, porque se sente tão gelatinoso como os atores. Nada o galvaniza, não o espanta nenhum jangotismo de tony.

Abudistado,  assiste até o indecoroso matar-se em massa.

As cenas do ano 1900, desenroladas na capital da República, durante a última epidemia, são “os noves fora nada” da obra do 15 de novembro. A máquina governamental, caríssima, não funciona nos momentos de crise. Não é feita para funcionar, senão para sugar com fúria acarina o corpodoente do animal empolgado.

De norte a sul o povo lamuria a sua desgraça e chora envergonhado o que perdeu.

Tinha um rei. Tem sátrapas.

Tinha dinheiro. Tem dívidas.

Tinha justiça. Tem cambalachos de toga.

Tinha parlamento. Tem antessalas de fâmulos.

Tinha o respeito do estrangeiro. Tem irrisão e desprezo.

Tinha moralidade. Tem o impudor deslavado.

Tinha soberania. Tem cônsules estrangeiros assessorando ministros.

Tinha estadistas. Tem pegas.

Tinha vontade. Tem medo.

Tinha leis. Tem estado de sítio.

Tinha liberdade de impressa. Tem censura.

Tinha brio. Tem fome.

Tinha Pedro II. Tem… Não tem!

Era. Não é.

Numa época terrível para a vida universal, em que cada país procurachefiar-se por intermédio dos homens de suprema energia, Wilson, Loyd George, Clemenceau, Ebert, o Brasil apalpa pescoço e não sente cabeça.Chegou a maravilha teratológica  duma acefalia inédita.

Anos atrás foi apresentado à Câmara dos Deputados um projeto de leimandando trasladar os restos de Pedro II para a terra natal. Aconsciência desse ramo do Legislativo, num assomo de revivescência,votou, em apoteose, a lei. Mauricio de Lacerda definira, nesse dia, a política republicana, como feita de alcouces e corrilhos.

A Câmara desmentiu-o por cinco votos. Mas o Senado confirmou-lhe oasserto, por quase unanimidade. Não convinha à turba desarcorhamphus, pacificamente acomodada em torno da presa adevorar a Pátria a transladação dos restos mortais. Quem sabe,conservariam essas cinzas algo da misteriosa força que caracterizou emvida Pedro II?

E viriam elas agindo pela presença perturbar a paz do festim? “Nada,não perturbemos nossa digestão” pensou o Senado. E o projeto caiu.

O Brasil é uma nação a fazer. Ou refazer, já que destruíram os alicercesda primeira tentativa séria. Cortado o fio da evolução natural,baralhados os materiais, dispensados os operários honestos e hábeis,hipotecadas as suas rendas, a política de hoje vive de uma indústria nova:aluguel da consciência. Cada empresa estrangeira aluga uma série. Deuma, a mais poderosa de todas, é sabido que chegou à perfeição de fichar comercialmente o preço de homens públicos.


“É a deliquescência final, o esverdear”…este estado de coisas é,entretanto, galvanizável. Bastaria repor na máquina a peça mestra quetudo coordena, essa forca catalítica sem a qual nenhum povo como onosso, instável, em formação, produto dos mais díspares elementosétnicos, conseguiu jamais alcançar as etapas sucessivas da nacionalidade.

Um homem, uma continuidade de ação, um pulso o bisneto de Marco Aurélio ou Rosas.

A força mansa que norteia o evoluir ou a força violenta que arrasa,desespera, e cria pela dor o instinto de defesa.

Tudo é preferível ao reino manhoso dos guzanos de boca dupla uma que mente ao povo, outra que o rói até aos ossos.

Esperemos em Anhangá, o deus brasileiro. Peçamos-lhe, neste mês dosaniversários imperiais, que ressuscite e reponha no seu lugar o espíritobom que neutralizava a influência dos espíritos maus.

É a nossa derradeira esperança, Anhangá…

Nenhum comentário:

Postar um comentário